Ai de mim

Hoje acordei com uma estranha sensação de enfado.

Janeiro acordou com ares de mofa.

Parado. Lojas sem movimento, pessoas preocupadas em pagar as contas que se amontoam no tampo da mesa nos primeiros dias do ano novo. Médicos com agendas vazias. A maior parte deles.

O que se vê no ar não mais é a chuva gorda que causa transtornos, bem como faz verdejar as campinas. O sol agora brilha forte por entre as pás da persiana verde que tapa o furor do sol de entrar em minha sala do sétimo andar.

Ao entrar aqui, depois de caminhar por apenas oito minutos de minha casa ao meu sacrossanto lugar onde o escritor divide o espaço com o médico urologista, ao abrir a agenda do dia apenas algumas parcas consultas estavam marcadas. Nada de especial, nenhuma pequena cirurgia agendada, algo que me fizesse respirar a fim de tirar meu saldo bancário do vermelho. Penso vou continuar a correr atrás do vil metal. Até quando? Só Deus sabe.

A crise mostra os dentes banguelas do lado de cá da linha do equador. Ano de eleição, de escolher entre os piores o menos ruim, para nos dirigir o país por quatro longos anos de outubro adiante.

Como aprecio o exercício da medicina! Como gosto de retirar, com o bisturi, as dores ou incômodos dos portadores de patologias várias pertinentes à urologia.

Pena que com a grana curta, com os planos de saúde tentando nos dificultar a vida, menos e menos enfermos nos procuram. A mim, pelo menos.

Ai de mim não fosse o dom divino a mim concedido de ser dotado de maiúscula sensibilidade. Talento este que me permite deitar no papel todos os meus anseios. Por em ordem meus pensamentos. Escrever com a maestria a mim ofertada de tempos pra cá. Afinal, foram dezoito livros publicados. Mais de dez mil crônicas escritas. Uma a cada dia. Dias nascem mais de uma.

O que seria de mim não fosse este dom que Deus me fez presente? O que faria aqui, olhando a janela do meu sétimo andar, a espera dos consultantes? Não fosse a prática da escrita, o aprendizado profícuo de tantos idiomas entre os quais me comunico cada vez melhor? Ai de mim não fossem as crônicas que bem retratam o cotidiano. Por vezes adverso e cruel. Às vezes feliz e majestosamente lindo?

Ai de mim.

Como me comportaria no dia após dia, caso não soubesse escrever, a ver as horas passarem lentas, sem nada a fazer, a não ser ver a noite chegar, com seus olhos escuros, rolar na cama de um lado ao outro, velar a minha insônia, ter medo da noite, como disse em vez anterior? Ai de mim.

O que seria de mim não fosse a família maravilhosa que atura meus repentes de ansiedade? A mulher magnífica, supermãe, melhor esposa, que comigo divide não apenas o leito, como a mim governa com mãos firmes de quem entende de números muito mais do que eu?

Ai de mim não fosse eles.

Ai de mim não fosse a luz do sol. Ou da lua. Ou o brilho fino das estrelas que enfeitam a via láctea. Nas noites estreladas. Mais um ai de mim fica aqui anotado.

O que seria do meu eu não fossem as pessoas que emprestam a confiança no médico especialista que ainda reside em mim?

Ai de mim não fossem elas.

Sei que em pouco tempo acabarei perdendo meu tirocínio. Meus dedos não terão a agilidade de agora. Minha imaginação não terá a efervescência de hoje. A inspiração vai me abandonar. Para sempre.

Ai de mim quando este dia maldito chegar. Tomara não mais esteja aqui. A sofismar.

Ai de mim quando as doenças ocuparem meu corpo velho, mas ainda rijo. Ai de mim, todo eu.

Depois de tantos ais de mim, agora são quase oito horas da manhã deste dia dezessete de janeiro, logo mais, as oito, começo a atender, só me resta desejar a todos um dia, se não ideal, que pelo menos vocês não tenham de repetir tantos ais de nós. É o que desejo a vós.

 

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