Del Rey e Rakel

Amanhã, sete de dezembro, inauguro idade nova. Dos atuais sessenta e sete vou um ano adiante. Em plena saúde. Fora alguns probleminhas inerentes à idade estou em forma plena.

Sou ainda capaz, não sei por quanto tempo ainda, de correr distâncias apenas inerentes aos carros. Nado como um pato sem asas. Não pedalo com a mesma competência.  Mas o suficiente para não cair da magrela.  Escrevo todos os dias pela manhã bem cedo. Como faço agora. Nasci em berço doirado. Tive pais amantíssimos que me deram tudo o que precisava e mais ainda. Não a mesma sorte que um sem teto que agorinha mesmo vi. Dormindo ao relento, quase na porta do prédio onde passo a maior parte dos dias. Ou militando na urologia ou escrevendo sempre mais.

Cheguei aos sessenta e oito com enorme disposição. Creio ainda me falta concretizar vários sonhos. Entre eles terminar minha casa no campo, na roça que tanto amo. De editar outros livros e passar adiante os escritos, um dia conseguirei meu intento.

Sempre me insinuou curiosidade a vida dos desabrigados. Uma vez, e não foi apenas e tão somente uma, quando corria léguas e mais delas, numa curva da estrada deparei-me com um andarilho. Enquanto eu fustigava as pernas, dava o melhor de mim, ele calmamente caminhava. Com uma trouxa de roupa amochilada às costas. Sem destino prefixado. Sem lenço ou documento. Sem as minhas preocupações do cotidiano. Ele era feliz e sabia. Conquanto eu, apressado, cheio de contas a pagar, embora tendo uma profissão definida, sou médico ainda, corria atrás da felicidade e não a encontrava. Nem na curva por onde subia. Muito menos na reta aguda por onde minhas pernas andariam.

Foi há inexato um mês atrás que me deparei com uma sem teto, uma moradora de rua acordando do seu sono pesado. Não tive como não parar junto a ela. Ela, de nome Rakel, dormia no mesmo lugar onde os carros estacionam no mesmo hospital onde trabalho. Antes trabalhava mais. Rakel gostaria de tomar um banho. Na Santa Casa não foi possível. Na hora telefonei ao 190 para saber onde em Lavras existia um albergue. Daquele número atencioso não tive a resposta que desejava. Como tinha pressa, como sempre, ofereci a Rakel vinte reais. Era o que tinha no bolso da calça escura. Ela me agradeceu, deu sua ficha, não muito limpa, e se tornou a personagem central do meu novo livro, o qual está apenas no começo. De nome Rakel.

Na roça que tanto amo mora um cão ainda filhote. Seu nome é Del Rey. Ele foi comprado ainda no desmame. Por uma soma não muito modesta. Para os cães da raça pastor alemão.

Hoje Del Rey coleciona bem menos anos que os meus. Meu cãozinho já está enorme. Quase do tamanho final quando for adulto.

Ele vai ser o guarda da casa que nunca termina. Ela vai ser chamada de Solar Paulo da Rosa. Del Rey é um cão territorialista. Não arreda patas dos seus domínios. Mesmo que lhe abram a porteira ele não escapa nunca.

Inexatamente há um mês Del Rey quase foi ao céu dos cachorros. Salvou-o do bico do urubu uma notável clinica veterinária. Ele teve uma virose que se não tratada a tempo fatalmente o levaria ao óbito. E ele dali saiu bem melhor de quando entrou.

Já no dia de trasanteontem de novo fui chamado ao socorro do meu cão amigo e fiel. Uma infestação de bernes tomava-lhe conta do dorso, na parte de trás do seu corpanzil já bem grande.

De novo a mesma clínica onde esteve antes foi a tábua de salvação do amigo Del Rey. Ontem mesmo o levei a outra casa. Onde por certo ele teria maiores cuidados.  Trata-se de uma casa beira lago. Em outra represa não tão perto. Levei-o na mesma caminhoneta. A qual chamo de pratinha valente. Ele foi sem emitir um latido sequer. Observando, orelhas em alerta, cada trecho da estrada.

Rakel, a desabrigada andarilha, hoje está na distante Floripa. Conforme soube via e-mail. Tudo isso consta no meu novo livro – de nome Rakel.

Penso que Del Rey ainda vai viver anos e anos mais. Quando estiver completamente restabelecido da sua infestação de bernes de novo o levarei de volta ao Solar Paulo da Rosa. Onde ele é o guardião dos seus domínios.

Rakel vai continuar a ser uma moradora de rua. Andarilha que sempre foi.

Ambos, Rakel e Del Rey, são uns sobreviventes. Neste mundo nosso que faz vítimas a cada segundo. Ou mortos atropelados na dureza do asfalto. Ou sem assistência médica adequada. Morrendo de inanição pura e simples.

Sorte que pude fazer algo pelo Del Rey cão. E pelos outros animais ? Soltos nas ruas? Os que cavoucam sacos de lixo? Exibindo costelas à mostra? E pelos outros andarilhos? Os que dormem debaixo das marquises?

Eu quase nada posso fazer. Mas o que puder, por certo, fá-lo-ei.

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